Artigo de Conclusão de Curso: PSICOLOGIA ANALÍTICA DE C. G. JUNG E A CLÍNICA DA TERAPIA OCUPACIONAL:

UM DIÁLOGO POSSÍVEL?

Jung

 

PSICOLOGIA ANALÍTICA DE C. G. JUNG E A CLÍNICA DA TERAPIA OCUPACIONAL: UM DIÁLOGO POSSÍVEL?

 JUNG ANALYTICAL PSYCHOLOGY AND THE OCCUPATIONAL THERAPY CLINIC: A POSSIBLE DIALOGUE?

 

Valquíria Ferreira Josué

Pedro Henrique M. Amparo

 

Já não existe um saber definitivo, precisamos de muitas sabedorias, para que umas corrijam a unilateralidade das outras.

 

Leandro Konder

 

 

 

RESUMO

Este artigo buscou subsídios a partir de relatos de casos da autora no âmbito da saúde mental para pensar a prática clínica do terapeuta ocupacional em que possa não apenas apoiar-se teoricamente como também identificar pontos em comum entre a psicologia analítica de C. G. Jung e o corpo teórico-prático da Terapia Ocupacional. Nise da Silveira pode ser considerada o elo no Brasil entre a Psicologia Analítica e a Terapia Ocupacional. Como resultado, este artigo possibilitou um vislumbre de entrelaçamento entre as duas abordagens e deixa aberto um caminho para aprofundamento.

Palavras-Chave: terapia ocupacional, ciência ocupacional, Nise da Silveira, Carl Gustav Jung, psicologia analítica.

ABSTRACT

This article sought subsidies from the author's case descriptions in the mental health field in order to think the clinical practice of the occupational therapist not only from the theorical perspective, but also in order to identify resemblances between  Jung analytical therapy  and the theoric-pratical body of the Ocuppational Theraphy. Nise da Silveira can be considered the link between Analytical Theraphy and Occupational Theraphy. As a result, this article made possible to have a glance between the two approaches and leaves open a path to delve further into the subject.

Key-words: Occupational Therapy, Occupational Science, Nise da Silveira, Carl Gustav Jung, Analytical Psycology

 

INTRODUÇÃO

 

É de amplo conhecimento que a psiquiatra Nise da Silveira, teve um papel atuante e significativo na saúde mental brasileira, nos cuidados dispensados às pessoas com transtornos mentais, no reconhecimento da Terapia Ocupacional com a reativação à sua época do STOR – Setor de Terapêutica Ocupacional do Hospital Psiquiátrico Engenho de Dentro (RJ), introduziu no país a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung e iniciou um movimento político e de resistência às práticas invasivas oferecidas à época como a lobotomia, os banhos gelados, os eletrochoques 1,2,11,13,17.

Sabe-se que Nise da Silveira, como responsável ao longo dos anos pelo STOR e posteriormente com a Fundação da Casa das Palmeiras, trabalhou utilizando-se e ofertando aos seus clientes inúmeros materiais e ferramentas, não apenas as telas, pincéis e argilas para as artes plásticas (pinturas e modelagens), mas também com oficinas diversas (sapataria e encadernação), música e teatro.1.

Numa pesquisa breve pelas bases de dados disponíveis na rede de comunicação virtual (Scielo, Revista Self, PePsic e BVS), foi possível observar que não há publicações, entre artigos e teses, que relacione a Terapia Ocupacional diretamente aos conceitos da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. Os artigos e teses mostram a relação da Terapia Ocupacional com o papel fundante de Nise da Silveira para um modelo de atuar em Terapia Ocupacional à época.

Não é intenção deste artigo, historiar sobre o nascimento da Terapia Ocupacional e todas as suas etapas evolutivas, outros modelos que coexistiam no país contemporâneos à Nise da Silveira ou olhar para os modelos abrangentes que temos na atualidade, mas sim, estabelecer um elo entre a Ciência Ocupacional 7 e a Psicologia Analítica hoje para a prática clínica do terapeuta ocupacional.

Pelas reflexões da autora deste artigo, a partir de leituras sobre a trajetória de Nise da Silveira e sua aproximação com a Psicologia Analítica de C G Jung, duas suposições emergem em livre interpretação. Primeiro, o fato de que Nise da Silveira, ocupou-se de um espaço ocioso no Centro Psiquiátrico Engenho de Dentro, o STOR, em 1946, e iniciou seus estudos a partir do que ela chamou método terapêutica ocupacional “Desde o início, nossa preocupação foi e natureza teórica, isto é, a busca por fundamentação científica onde firmar uma estrutura que permitisse a prática da terapêutica ocupacional” 2:16.

Uma segunda suposição é que ao longo dos anos e estudos, Nise foi distanciando-se do modelo terapêutica ocupacional, pois a profissão Terapia Ocupacional foi ganhando corpo teórico-prático específico, principalmente a partir do surgimento do primeiro curso em São Paulo em 19513 e sua regulamentação Decreto-Lei no 938, de 13 de outubro de 19694. Assim, Nise caminhou para o desenvolvimento do que chamou de “a emoção de lidar” “Preferimos dizer emoção de lidar, expressão usada por um dos clientes da Casa das Palmeira, pois surge a emoção provocada pela manipulação dos materiais de trabalho, uma das condições essenciais para a eficácia do tratamento”2:22.

Hoje, o modelo criado por Nise da Silveira, é e pode ser amplamente usado por diversos profissionais da saúde, independente da formação original, incluindo os terapeutas ocupacionais. Diferentemente, os métodos pertencentes à profissão Terapia Ocupacional só são aplicados por terapeutas ocupacionais e a prática clínica do terapeuta ocupacional guarda muita semelhança com o método “emoção de lidar” como pode ser constatado nesta citação de Rui Chamone Jorge 5:13:

 

A principal importância da Terapia Ocupacional reside no fato de se oferecerem ao paciente oportunidades de intervir na realidade externa, segundo sua intenção, vontade e com liberdade. De sua intervenção o paciente obterá um objeto através do qual adquirirá consciência. E obtém-se consciência a partir do que o homem pensa de si e do que pensa faz um objeto conceitual e/ou concreto que expõe à própria crítica e à de terceiros.

Intenta-se, portanto, explorar através de novo olhar a prática clínica do terapeuta ocupacional atual amparando-se diretamente nos referenciais teóricos da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung e não somente a partir de Nise da Silveira. Há inúmeros autores dentro da Terapia Ocupacional que abordam em suas obras o potencial inconsciente evocado pela produção plástica e criativa do cliente, entretanto, pelo uso da linguagem simbólica em suas obras, outro autor que será referência para este artigo é Rui Chamone Jorge (1941-1993).

 

TERAPIA OCUPACIONAL: TEORIA E CLÍNICA

O ser humano é um ser ocupacional 7,12.. Esta é a premissa que fundamenta a Ciência Ocupacional, corpo teórico que ampara a prática da profissão Terapia Ocupacional.

A Terapia Ocupacional é fundamentada na compreensão de que o envolvimento em ocupações estrutura a vida cotidiana e contribui para a saúde, para o bem-estar e são centrais para o senso de identidade, competência e estruturação da vida do indivíduo [   ] 6.

 

A palavra ocupação carrega muitos significados se considerados os diferentes contextos sociais, históricos e culturais de um indivíduo. Enquanto ato, as ocupações são consideradas multidimensionais, complexas e experimentadas pelo indivíduo de modo objetivo e subjetivamente, carregadas de significações tanto singulares quanto universais.

[  ] a ocupação é composta de tarefas e atividades diárias propositais, na qual as pessoas se engajam e que possuem um significado ou valor pessoal e subjetivo. Estas ações são organizadas pela formação cultural, os interesses e aspectos da vida que são significativas para cada indivíduo 7:652-53.

 

Tem-se, portanto, que o objeto de estudo do terapeuta ocupacional é o homem ocupacional, ou seja, o homem envolvido e engajado na realização de suas atividades cotidianas e os significados singulares que atribui.

 

A Terapia Ocupacional, como área de conhecimento e prática de saúde, interessa-se pelos problemas do homem em sua vida de atividades. Em outras palavras, considera as atividades humanas como o produto e o meio de construção do próprio homem e busca entender as relações que este homem em atividade estabelece em sua condição de vida e saúde 8:27.

 

Desta forma, o terapeuta ocupacional observa, analisa e avalia o homem e sua condição de saúde a partir da forma como desempenha suas ocupações, atividades e tarefas. O que se faz, como se faz, porque e para que se faz, está repleto, portanto, de significações para àquele que faz.

É no fazer que o homem confere sentido à própria vida, estrutura sua rotina e desenvolve um senso de identidade e competência 9 que ultrapassa uma questão apenas individual, mas que também interfere e está sujeita às interferências de seu contexto e ambiente. Fatores físicos, emocionais, sociais, culturais, motores, sensoriais, espirituais, desenvolvimento de habilidades, simbolismos e experiências relacionais vivenciadas pelo indivíduo confere a este um aspecto singular, único. Toda a significação atribuída por ele a determinadas ocupações e atividades enquanto outras são preteridas, derivam de registros conscientes e inconscientes de suas vivências e experiências 7.

Este olhar multifacetado e tão necessário à clínica da Terapia Ocupacional impulsionou-a na comunicação com outros campos de conhecimento, como educação, sociologia, política, psicologia, artes e filosofia, apenas para citar alguns, conferindo-lhe um caráter de transversalidade.

Neste ponto, é preciso esclarecer os termos ocupação/ocupações e atividade/atividades para evitar conflitos conceituais. Ao longo do artigo, o termo ocupação/ocupações designará as ações que um indivíduo desempenha cotidianamente num determinado tempo e contexto, por um período relativamente duradouro. As ocupações são compostas por atividades e tarefas e necessitam que o indivíduo possua habilidades específicas para realizá-las de modo satisfatório. Também estão intimamente ligadas a determinados padrões e papéis desempenhados pelos indivíduos. Os termos atividade/atividades/objeto serão usados para designar as ações e as criações que acontecem no espaço terapêutico ocupacional e quando se referir às atividades que compõem uma determinada ocupação 9, 10, 11.

 

O ENTRELAÇAMENTO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA COM A PROCESSO TERAPÊUTICO OCUPACIONAL

 

Desde os tempos mais remotos da humanidade o homem fabrica, usa as mãos como ferramentas, e cria objetos que lhe são úteis e objetos que são considerados belos. No desenvolvimento humano, o homem aprendeu a comunicar-se antes por gestos e desenho 12 e depois pela oralidade. Aqui reside o olhar do terapeuta ocupacional: na comunicação não verbal.

Para os terapeutas ocupacionais há um potencial no ato, naquilo que é feito ou fabricado pelo cliente e assim, sua atividade é valorizada pela sua expressividade e simbolismo particular 13:41.

 

Não é possível mentir quando se fabrica. Os erros, os acertos, os objetos, são sempre obra intencional, ainda que não-conscientes, pois “embora seja a mente que busca, com muita frequência é a mão que encontra” (20), e o ato de fazer traz, em seu bojo, necessariamente o pensar. E o pensar traz consigo a necessidade de comunicar o que pode se dar de forma explícita, clara, ou de forma implícita, velada. Ninguém faz só por fazer. Faz-se alguma coisa em busca de outra. E a busca será sempre a do instrumento adequado do discurso e do prazer. Nessa busca, muitas vezes dificultada por tantas variáveis, se empenham o cliente e o terapeuta ocupacional 12:11 (grifos do autor).

 

Enquanto fabrica “desmaterializa o material e materializa o imaterial” (20). Esta ação torna possível copiar, fazer, desfazer, inventar e, portanto, tornar palpável o pensamento, o sentimento, a intenção 12:11 (grifos do autor).

 

A produção do cliente é objetivada na atividade, revelando a nível não verbal a expressão inconsciente daquele que cria e faz e torna-se a base para o falar e pensar.

O processo terapêutico ocupacional, portanto, visa amplificar, pela relação terapeuta-paciente-atividade, uma maior consciência de si, visto que é possível conhecer a si próprio pelos objetos que fabrica, pelas atividades que realiza, desde a escolha dos materiais e ferramentas, até a forma como as realiza e como dispõe delas posteriormente.

É por conhecer a si mesmo, que o cliente desenvolve habilidades para engajar-se em ocupações necessárias e prazerosas, potencializa ou desperta para um potencial criativo que lhe permite fazer escolhas mais assertivas para sua vida, tendo como resultado não somente a atenuação de seu sofrimento psíquico, mas a possibilidade de se sentir mais integrado. Nas palavras de Silveira “[ ] os produtos da atividade inconsciente merecem o maior crédito, pois são manifestações espontâneas de uma esfera psíquica não controlada pelo consciente, livre em sua forma de expressão” 2:158.

Nise da Silveira foi quem primeiro relacionou a teoria de C. G. Jung com o trabalho terapêutico ocupacional.

Historicamente, em saúde mental, o terapeuta ocupacional sempre teve um papel significativo no atendimento de pessoas com sintomas psicóticos ou com esquizofrenia, pela gravidade do quadro clínico, pela manifestação dos sintomas como pensamento desorganizado, pouco coerente, presença de alucinações e delírios, comportamentos estereotipados dificultando em casos mais graves, o acesso aos afetos e pensamentos desse sujeito pela via verbal. As possibilidades de expressão através da atividade tornam-se imensuráveis 2.

Jung, em vários escritos nos quais menciona seus casos clínicos relata os momentos em que sugeria aos seus clientes a concretização, por exemplo, de sonhos. Abaixo alguns trechos para exemplificar tal pensamento.

 

Muitas vezes impõe-se a necessidade de esclarecer conteúdos obscuros, imprimindo-lhes uma forma visível. Pode-se fazer isso desenhando-o, pintando-o ou modelando-o. Muitas vezes as mãos sabem resolver enigmas que o intelecto em vão lutou para compreender 14:33.

 

Por isso eu aproveitava uma imagem onírica ou uma associação do paciente para lhe dar como tarefa elaborar ou desenvolver estas imagens, deixando a fantasia trabalhar livremente. De conformidade com os gostos ou dotes pessoais, cada um poderia fazê-lo de forma dramática, dialética, visual, acústica ou em forma de dança, de pintura, de desenho ou de modelagem 14:150.

 

Antes de mais nada, o que interessa é que se produza um efeito. [   ] Passa a representar coisas que antes só via passivamente e dessa maneira elas se transformam em um ato seu. Não se limita a falar do assunto. Também o executa. Psicologicamente isso faz uma diferença incalculável [   ] 15:61.

 

Sueli (nome fictício) tem 56 anos, solteira, sem filhos. Ficou órfã de pai e mãe ainda na infância e adolescência e foi criada por familiares maternos, com muitos conflitos. Ela reside em casa própria, sozinha e tem um trabalho de meio período. Atualmente sua família paterna, irmão e cunhada, são as pessoas que a ajudam em seu cotidiano. Ela sempre muito insegura e com muitos medos projetados em ameaças externas, dizendo repetidamente que “querem lhe fazer o mal” (sic). Tem o diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia 16. Ela é uma pessoa que se envolve em atividades utilizando-se de materiais e ferramentas diversificadas, se dispõe a aprender e experimentar, mas prefere particularmente a pintura de telas e peças de madeira. Seu fazer é sempre minucioso, detalhista e perfeccionista e expõe desta forma o modo como ela olha e deseja as relações interpessoais, com baixa tolerância à falha do outro.

Quando envolvida na fabricação de objetos, não tem pressa, e por vezes uma só atividade leva meses e até mesmo um ano para ser concluída. Fica concentrada e em silêncio. Ela revela que quando faz, sua mente se acalma e “minhas ideias se organizam, e posso pensar melhor” (sic). Muitas vezes ela diz que é a terapeuta ocupacional que ajuda a “consertar minha cabeça” situando a terapeuta ocupacional como aquela que a ajuda a traduzir aquilo que ela faz e como ela faz para um pensamento ou uma ideia de modos de ser na relação com outras pessoas.

Durante este processo de fazer atividades o cliente tem a oportunidade de olhar a si próprio através do objeto materializado. Este objeto é ele próprio e reflete seus pensamentos, fantasias e emoções. Há um favorecimento de contato com aspectos inconscientes, o que estava oculto pode vir ao consciente. Toda sua experiência interior, muitas vezes sentida como caótica, pode se materializar, tomar forma, ser ressignificada. O terapeuta ocupacional neste momento, é o observador e o mediador da relação entre o cliente e sua produção, sua produção, o objeto concreto é o elo entre seu mundo interno e a realidade que pode ser compartilhada com o terapeuta ocupacional.

Ana (nome fictício), tem 36 anos de idade, casada, duas filhas. Sofreu abuso sexual por um longo período quando criança, fato não revelado à terapeuta ocupacional inicialmente. Seu agressor foi seu padrasto. Nas sessões de terapia ocupacional aprecia o trabalho com objetos que oferecem firmeza e resistência como madeira e mosaico. Uma certa sessão aceita o trabalho com argila. Ela faz a imagem de um homem, grosseiramente. Diz que se parece com um monstro, não reconhecendo a figura humana, talvez um “extraterrestre”. A terapeuta ocupacional observa, não verbaliza, mas a figura lembra uma figura humana e agressiva: uma das pernas é menor, a boca aberta e o que parece ser uma língua fica em evidência. Na sessão seguinte ela olha e tenta remodelá-lo, e conclui ser seu padrasto (portador de deficiência em membro inferior). Pode, pela primeira vez, falar sobre assunto tão sofrido e delicado. Percebe que pessoas fazem monstruosidades, mas ainda assim são pessoas. Entende seus acessos de raiva quando em reuniões familiares diante de alguns comentários machistas e o excesso de proteção com suas filhas. Na terceira sessão ela quebra a imagem em pedaços e decide jogar no lixo.

Mesmo que a cliente tenha modelado, remodelado, destruído e jogado, não apenas foi importante para seu processo terapêutico, a materialização de um evento traumático, como o compartilhamento com alguém que pode acolhê-la. Agora, não mais é necessário o objeto concreto, pois ele cumpriu sua função.

 

[  ] são imprescindível para que a sua abordagem, em sua fala, postura e propostas sobre o fazer e a própria dinâmica da sessão, aconteça no sentido de favorecer o aparecimento de emoções, ações, pensamentos e sintomas, a fim de serem compreendidos e elaborados pelo cliente e terapeuta ocupacional, gerando transformações 11:205.

 

 

Portanto, compete ao terapeuta ocupacional, oferecer ao cliente recursos (materiais e ferramentas) que o auxiliem na expressão e materialização desse inconsciente caótico e perturbador e juntos estabelecerem uma comunicação ao que foi expresso com a situação vivenciada pelo cliente, seu sintoma, seu cotidiano.

 

A psicoterapia junguiana tem por meta não só a dissolução de conflitos interpessoais, mas favorecer o desenvolvimento das “sementes criativas” inerentes ao indivíduo doente. E é justamente em atividades feitas com as mãos que, com bastante frequência, se revela a vida dessas “sementes criativas”. Jung escreve: “Se houver alto grau de crispação do consciente, muitas vezes só as mãos são capazes de fantasia” 17:111.

 

Para Nise da Silveira, o “fio diretor do tratamento ocupacional” seria recuperar o indivíduo “para a comunidade em nível até mesmo superior àquele em que se encontrava antes da experiência psicótica” 2:19 . Uma fala que Sueli diz constantemente é que o maior aprendizado foi poder ver-se como uma “pessoa de direitos”, e que “os normais também têm seus poréns” (a palavra porém é usada por ela para designar problema).

Jorge 5,12 destaca que além do terapeuta e do paciente, são elementos constantes e essenciais no processo terapêutico ocupacional os materiais a ferramenta e o objeto que se fabrica: “O substantivo ocupação nos remete a pensar sobre as coisas que ele implica: os materiais, as ferramentas, os objetos; e que esses elementos se encontram no mundo externo e também no mundo interno” 5:59.

Hugo (nome fictício) é uma criança de dez anos de idade. Apresenta uma multiplicidade de sintomas: inquieto, impulsivo, auto e heteroagressivo, dependente para a realização de suas atividades de vida diária, dificuldades na vida acadêmica tanto no processo de aprendizagem quanto relacional (é vítima e agressor), obeso, maltrata animais. Sua fala, revela um pensamento pouco coerente, buscando sempre por referências e modelos: “se eu te beliscar vai doer?”. O ambiente familiar ao qual está inserido é violento verbal e fisicamente. Desde que foi inserido no atendimento de terapia ocupacional construiu uma vinculação com a terapeuta ocupacional de confiança. Quando utilizava de atividades gráficas (desenhos), estes sempre mostravam o caos interno: traços e rabiscos muitas vezes incompreensíveis, revelando sua imaturidade psíquica e desarranjos ideoafetivos. Mas, quando trabalhava com argila, trabalhava em silêncio e concentrado. Fez representações de animais do seu cotidiano (pintinho e cachorra) e fez um vulcão e vivenciou fascinado a experiência (de fazer uma erupção) junto à terapeuta ocupacional. Ele solicitou repetir a experiência por três vezes. Após esta experiência, Hugo se permitiu ser cuidado pela terapeuta ocupacional, a respeito das feridas que tinha em sua perna (autolesionadas), como ser ensinado a passar o creme e pomada que necessitava.

 

A realidade é aquilo que se percebe e se constrói, por isso fica muito mais fácil inferir que aquilo que o paciente faz é a atualização de seu objeto interno na realidade.

Assim, o que o terapeuta tem à sua frente, na forma de coisa, é muito mais que um simples objeto concreto (dado bruto da experiência, envelope). Esse objeto reforça o que o paciente disse, ou nega-o. Complementa a informação dada, introduz novos elementos na conversação e eterniza o sentimento na concretude e, aí, congela o momento 5:60.

 

É claro que a escolha do material pelo paciente também não é aleatória, pois ela revela algo daquele que escolhe. Hugo escolheu argila, e na fabricação do vulcão, escolheu dar vida a este. O vulcão é a experiência concreta de si mesmo, a qual permite o reconhecimento que há vida dentro dele e que não é sempre possível ser contida, ele e o vulcão são forças da natureza. Olhar o vulcão é olhar para si. A argila lembra que tanto ele quanto o material escolhido, falam de uma conexão com o primitivo, o que vem antes, ou seja, o ato, o gesto, o movimento, antes da fala e do pensamento.

A criação de objetos de modo livre, criativo e espontâneo, favorece a auto satisfação, o prazer e consequentemente uma expansão de sua consciência, pois o objeto fabricado por ele próprio, ajuda na identificação com os conteúdos que lhe pertence e possibilita que surja “gradualmente, uma personalidade mais ampla e amadurecida que, aos poucos, torna-se mais consistente e perceptível mesmo para outras pessoas” 18:211.

 

[   ] a espontânea expressão das emoções, que dão larga oportunidade a que os afetos tomem forma e se manifestem, seja na linguagem das imagens simbólicas, seja na linguagem dos movimentos, da dança, dos gestos, da mímica, seja através de sinais mais ou menos explícitos 1.

 

Neste processo, espera (futuro) que o sujeito-cliente, desenvolva um potencial criador e criativo, para uma vida em sociedade em que seja capaz de desempenhar as ocupações de que necessita, sente prazer ou simplesmente deseja experienciar.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Neste esboço de um pensamento que integre a Psicologia Analítica de C. G. Jung com a Terapia Ocupacional, foi possível demonstrar pontos de convergência entre ambas, em especial, quando C. G. Jung faz referência à importância da experimentação, vivencia e materialização de sonhos, associações e ideias através do uso de atividades expressivas ao longo de suas obras caminhando ao encontro da Terapia Ocupacional, que historicamente se utiliza como recurso terapêutico o fazer atividades, com materiais e ferramentas diversas, explorando com o cliente toda as suas potencialidades, capacidades e limites, incentivando a criatividade e espontaneidade.

Este artigo inaugura um campo de investigação, estudo e aprofundamento para os profissionais da psicologia e da terapia ocupacional.

 

REFERÊNCIAS

 

1. Silveira N da. Terapêutica Ocupacional: teoria e prática. Rio de Janeiro: Casa das Palmeiras, sem data.

 

 

2. ___________. O mundo das imagens. São Paulo: Editora Ática, 1992.

 

 

3. Carlo MMR do P De, Bartalotti CC (organizadores). Terapia ocupacional no Brasil: fundamentos e perspectivas. São Paulo: Plexus Editora, 2001.

 

 

4. Brasil. Decreto-Lei no 938, de 13 de outubro de 1969. Provê sobre as profissões de fisioterapeuta e terapeuta ocupacional, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 14 out 1969.

 

 

5. Jorge RC. O objeto e a especificidade da Terapia Ocupacional. Belo Horizonte: GESTO, 1990.

 

 

6. Associação Americana de Terapia Ocupacional. AOTA. Estrutura da prática da Terapia Ocupacional: domínio & processo. 2a ed. Carleto DG de S; et al. tradutores. Rev. Triang.: Ens. Pesq. Ext. Uberaba – MG, v.3. n.2, p. 57-147, jul/dez. 2010. Disponível em:

 

 

7. Costa EF et al.  Ciência Ocupacional e Terapia Ocupacional: algumas reflexões. Rev. Interinst. Bras. Ter. Ocup. Rio de Janeiro. 2017. V.1(5): 650-663. Disponível em <https://revistas.ufrj.br/index.php/ribto/article/view/9687>

 

 

8. Medeiros MH da R. Terapia Ocupacional: um enfoque epistemológico e social. São Carlos, SP: EdUFSCar - Hucitec, 2003.

 

 

9. Associação Americana de Terapia Ocupacional. AOTA. Estrutura da prática da Terapia Ocupacional: domínio & processo. 3a ed. Cavalcanti A, Dutra FCMS, Elui VMC, tradutores. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo. 2015 jan-abr; 26 (ed. especial): p. 1-49. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rto/article/view/97496/96423>

 

 

10. Salles MM, Matsukura TS. Conceitos de ocupação e atividade: os caminhos percorridos pela literatura nacional e de língua inglesa. Salles MM, Matsukura TS (organizadores). Cotidiano, atividade humana e ocupação: perspectivas da terapia ocupacional no campo da saúde mental. São Carlos, SP: Edufscar, 2016. p. 13-35.

 

 

11. Josué VF. Intervenção de terapia ocupacional em saúde mental com crianças em sofrimento psíquico: reflexões a partir do referencial teórico psicodinâmico. Pfeifer LI, Sant´Anna MMM (organizadores). Terapia Ocupacional na Infância: procedimentos na prática clínica. São Paulo: Memnon, 2020. p. 202-219.

 

 

12. Jorge RC. Chance para uma esquizofrênica. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1980.

 

 

13. Oliveira YC. Terapia Ocupacional em Saúde Mental: Uma Abordagem Psicodinâmica. Fortaleza. RECCS/F. 1995; ano 9 (8): 40-6.

 

 

14. Jung CG. A natureza da psique. Rocha MR, tradutor. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. (Obra completa; 8/2)

 

 

15. Jung CG. A pratica da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. Appy ML, tradutor. 16. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. (Obra completa; 16/1)

 

 

16.  Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-5. Associação Americana de Psiquiatria. Nascimento MIC et al., tradutores. Cordioli AV, revisão técnica. 5a ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

 

 

17.  Silveira N da. Imagens do Inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

 

 

18. Franz, M-L Von. O processo de individuação. Jung CG (concepção e organização). O Homem e seus símbolos. Pinho ML, tradutor. 3a ed. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil, 2016. p. 204-307.

 

 

 

1 O autor agradece a colaboração e as orientações do Dr. Pedro Henrique M. Amparo, docente do Instituto Anima de Ribeirão Preto, SP.

* Endereço para correspondência: Rua Antônio Rodrigues Bicas, 38. Bairro Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP. CEP 14051-149. Telefones: (16) 99724-0165. E-mail: valjosue1@gmail.com

 

 

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